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Por: professor Orlando Berti*
Os dois nasceram no Sertão do Piauí, inclusive em cidades sertanejas do Norte do estado. São filhos de famílias pobres, criados com muita dificuldade, muito próximos à miséria. Foram tomando corpo com o riscado de serem sujeitos quase condenados a não ser ninguém. Ambos ficaram famosos nacionalmente e este ano foram os dois jovens do Piauí mais falados no país.

Izael, de Cocal dos Alves, destino: Faculdade de Medicina. Gleison, de Castelo do Piauí, destino: cemitério

Um deles colhe louros dia após dia. Caminha a passos largos para ser um cidadão de bem, que ajudará muita gente. O outro, apesar de também famoso, já não pode mais colher nenhuma benesse. Está imóvel, como tantos outros jovens não tão conhecidos, em um dos cemitérios da periferia de Teresina. Foi enterrado lá porque na sua cidade natal havia boatos de que não seria aceito sequer nos cemitérios.

Izael: o campeão de soletração

Esses são os jovens piauienses Izael Francisco de Brito Araújo, 19 anos, e Gleison Vieira da Silva, 17 anos. O primeiro é estudante de Medicina e vem da cidade de Cocal dos Alves (a 262 quilômetros ao Norte de Teresina). O segundo era desempregado e vinha da cidade de Castelo do Piauí (a 199 quilômetros ao Norte de Teresina).
Izael é reconhecido nacionalmente por ser campeão do programa Soletrando (da Rede Globo), por ter passado para o curso de Medicina ainda no meio do Ensino Médio (mesmo estudando em escola pública) e por estar na final do Soletrando dos Campeões (fala-se extraoficialmente que o programa já foi gravado e ele foi o campeão dos campeões de soletração).
Gleison é conhecido nacionalmente pela acusação de ser um dos cinco algozes (sendo quatro deles menores de idade) do estupro coletivo de Castelo do Piauí, um dos crimes mais bárbaros da história do Piauí ocorrido em maio deste ano. Além disso ganhou notoriedade entre o quinteto por ter sido cruelmente assassinado no encarceramento, em julho, entremeio a uma história de dezenas de capítulos, cada vez mais caminhando para uma novela dantesca.
Dois destinos, com histórias parecidas no início, mas que, através do estudo, mudaram completamente. Um deu certo. O outro não teve oportunidade a chances de experimentar o certo. Conheceu mais o errado e ficou famoso por lados que ninguém quer: o crime e a morte.
POBRES, DE CIDADES AFASTADAS, ESTUDANTES DE ESCOLAS PÚBLICAS, MAS COM CAMINHOS E DESTINOS DIFERENCIADOS PELO ESTUDO

Gleison: condenado por estupro coletivo em Castelo do Piauí

As semelhanças entre Izael e Gleison param a partir do momento que entra o fator escolaridade. Enquanto o célebre jovem de Cocal dos Alves entrou na universidade antes mesmo de terminar o Ensino Médio, o célebre jovem de Castelo do Piauí não concluiu nem o primário.
O cocalense nasceu em 27 de maio de 1996. Enquanto o Castelense nasceu em 17 de fevereiro de 1998. São apenas 571 dias de diferença de um para o outro. Mas, em termos de escolaridade, parece que nasceram em mundos diferentes, mesmo ambos tendo frequentado escolas públicas, com dificuldades parecidas e toda a cantilena tão divulgada entre as oportunidades de estudar e oportunidades de entrar e continuar no mundo do crime.

Da pobreza para 11 títulos nacionais e faculdade de Medicina

Izael é tímido, sempre foi concentrado. Gleison era tido como hiperativo, apontado por familiares entrevistados pela reportagem como “danado” e com passagens por diversos colégios da cidade. Em parte deles terminou sendo convidado a ser transferido. No último, foi expulso.
Empurrava-se o problema para outras unidades escolares e nunca procurava-se ver o que realmente se passava com ele. Era uma estatística, daquelas que os poderes públicos gostam de evitar. Até o final da vida continuou sendo.
O jovem Izael era estimulado a estudar, a ter turnos extras de estudo, muito tempo antes de se falar na rede pública de ensino do Piauí em Ensino de Tempo Integral. O jovem Gleison passava os períodos de escola vadiando na região de sua residência, que sequer tem calçamento ainda hoje. Foi colocado para estudar pela manhã, não deu certo; pela tarde, não deu certo; pela noite, não deu certo. As drogas já o consumiam e nada de querer estudar. Mal sabia ler e escrever.

Da pobreza para o encarceramento

Enquanto isso Izael vencia concursos nacionais. Até antes de entrar na universidade já tinha ganho 11 prêmios nacionais. Gleison não ganhou nenhum. Até o título chulo de bandido-mirim mais perigoso da cidade foi dado ao companheiro I.V.I., 15 anos, principal acusado de ser o mentor do seu assassinato. Ganhou apenas o título de estuprador e matador, imputados pela população de Castelo do Piauí e confirmados por condenação judicial.
Foi na escola que o primeiro foi catapultado a ser reconhecido nacionalmente e, em breve, será médico. Foi na escola que o segundo começou a ver que não era um lugar para si: a rua, as drogas e a delinquência eram mais instigantes.
Enquanto Izael vencia Olimpíadas de Matemática, Química e Português, Brasil afora, Gleison conhecia o CEM (Centro Educacional Masculino) em Teresina e sabia descrever o que era uma cela.
O que ocorreu para serem tão diferentes? Por que há mais Gleisons hoje do que Izaéis na nossa sociedade? A pobreza é sinal de derrota? Como as oportunidades podem ser importantes e agarradas? E a escola? E a família? E as religiões? E os políticos? E a mídia? E a cidadania?
Talvez nunca teremos respostas concretas para as soluções e melhorias dessa situação. Mas sabemos que, mediante situações sociais bem parecidas entre os dois jovens, terminam sendo as oportunidades e as formas de incentivo e agarro a elas que podem ser cruciais no futuro de um jovem que ajudará muita gente, como é o caso do rapaz que será médico, ao que destruiu várias famílias (inclusive a sua) como é o caso do rapaz hoje morto.
Muitos de Cocal dos Alves e de outras tantas cidades nos confins do Piauí continuam entrando na universidade e vencendo. Muitos outros, das periferias urbanas e zonas rurais continuam superlotando as unidades de internação para menores de idade e os presídios do estado.

Dicotomias de uma história de oportunidades que se repetem, mas que podem ser mudadas pela sociedade

Por mais oportunidades e Izaéis e por mais atenção aos tantos Gleisons que hoje vagam pelas ruas, drogados e cometendo delitos e que muitas vezes são silenciados pela sociedade, por mim, por ti.
* Jornalista e professor universitário. Atua em O Olho via Projeto de Pesquisa de Etnografia das Redações tentando entender o modo de fazer jornalismo no Piauí.

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